No SabIAr, sempre buscamos ampliar o conhecimento sobre o uso de tecnologias emergentes para a transformação social. Recentemente, tivemos o privilégio de conversar com João Vitor Bogas, consultor em gestão de negócios e especialista em Notion.
João compartilhou sua vasta experiência com inteligência artificial (IA), destacando suas aplicações em impacto social e refletindo sobre o futuro das tecnologias.
A seguir, confira a entrevista completa, onde discutimos o papel da IA em startups de impacto e a importância de uma visão crítica e consciente sobre o tema.
Como você quer ser apresentado:
João Vitor é consultor em gestão de negócios e especialista em Notion, uma plataforma all-in-one de gestão de projetos, tarefas e de conhecimento. Formado em Administração pela USP e em Impacto Social pelo Amani Institute, trilhou grande parte da sua carreira na Hand Talk, uma das mais premiadas startups de impacto do Brasil. Lá, estruturou as equipes de Marketing e Operações, sendo responsável, como Diretor, pela estratégia e gestão do portfólio de projetos da empresa.
Andressa, do SabIAr:
Explica qual a sua relação com o tema da inteligência artificial? E o que você entende por ser IA?
João:
Minha relação com o tema vem de dois contextos. O primeiro é a Hand Talk, uma startup de impacto social em que trabalhei por 7 anos. A Hand Talk é a maior plataforma de tradução automática para línguas de sinais do mundo, e seus dois produtos principais – o Hand Talk App e o Hand Talk Plugin – utilizam de modelos de inteligência artificial para realizar traduções em larga escala. Eu não sou da área técnica, mas conduzia muitas discussões estratégicas sobre produtos dentro da organização, então o contato com o tema era recorrente.
Além disso, sou um entusiasta sobre os temas de privacidade e segurança digital e direitos digitais. Acompanho algumas discussões sobre esses assuntos e acredito que ainda se fala pouco sobre eles, principalmente considerando o quanto nossas vidas estão mergulhadas nos ambientes digitais e como as ferramentas de inteligência artificial se relacionam com esses pontos.
Na minha perspectiva, hoje existe essa associação muito forte entre “Inteligência Artificial” e ferramentas que sintetizam conteúdo automaticamente (IAs gerativas), como o ChatGPT, o Midjourney etc.. Mas entendo que IA vai muito além disso e vem de antes da popularização dessas ferramentas. Sistemas baseados em IA já fazem parte de muitas das ferramentas com as quais interagimos diariamente.
Por exemplo: a gente sempre fala dos algoritmos que selecionam os conteúdos dos nossos feeds nas redes sociais, mas às vezes se esquece de que eles também são baseados em modelos de inteligência artificial. O que a explosão das IAs gerativas fez foi dar para as organizações um rótulo útil e poderoso em termos de estratégia de marketing: “eu sou uma empresa de IA, como as outras que estão bombando”, e isso tem que ser visto com cuidado. O que significa ser uma empresa de IA? Utilizar inteligência artificial nos seus produtos? Dar visibilidade a ferramentas de geração automática de conteúdo dentro deles? Ou se comunicar como uma? Por si só, ser uma “empresa de IA” pode não significar muita coisa.
Andressa, do SabIAr:
E com a tua experiência, quais são os pontos que você acredita que o campo deveria se concentrar quando discute o uso de IA?
João:
Primeiro, o ponto que comentei, sobre entender o que é ou não inteligência artificial. A cobertura sobre o assunto e a própria comunicação de empresas que lideram o mercado associa IAs a algumas ideias equivocadas, como a de que são ferramentas com consciência, que entendem o que está sendo dito a elas, ou que são mágicas. Eu até entendo o porquê do segundo aspecto ser algo com o qual a gente tende a concordar – é difícil compreender como é possível que o ChatGPT, por exemplo, devolva textos tão complexos a partir de uma pequena orientação nossa em segundos, principalmente quando os mecanismos técnicos que possibilitam isso não são coisa simples de se explicar para o público geral. Parece um milagre mesmo, mas não é. Da mesma forma que não estamos falando de ferramentas com vida e intenções próprias. São sistemas treinados em bases de dados gigantes, capazes de identificar e replicar padrões em um nível muito mais profundo e rápido do que faríamos. Ou seja, são ferramentas. São algo que podemos questionar, influenciar, ajustar e aplicar em contextos mais ou menos apropriados.
Logo, acho que uma visão crítica é sempre bem-vinda. Aquela visão tecno-otimista predominante nos anos 2010, de que a tecnologia é essencialmente algo positivo, quase como uma força da natureza, não cabe mais hoje em dia. Não depois de tantos casos reais problemáticos sobre a atuação da Big Tech. Olhar para as lacunas que os sistemas automatizados têm, para as ideologias que orientam o desenvolvimento deles e para quais usos podem ser éticos ou não, é essencial para que de fato a tecnologia seja um instrumento de mudança social positiva e não um de manutenção de poder.
Considerando as IAs gerativas, especificamente, eu destacaria a importância de pensarmos e criarmos ferramentas com uma lógica menos colonial e extrativista. Como esses sistemas dependem de uma grande quantidade de dados para funcionar, várias das ferramentas mais populares de IA seguem a mesma lógica de séculos: extrair matéria-prima barata, muitas vezes sem autorização, para processá-la e depois vender um produto especializado, com alto valor agregado, para os mesmos mercados dos quais a matéria-prima veio. Só que nesse caso, essa matéria-prima são dados muitas vezes relacionados ao nosso comportamento, intenções, comunicação – algo que pode ser muito sensível, tanto num nível individual, quanto num institucional. Ou seja, se seguirmos o padrão de mercado, vamos continuar concentrando poder e riqueza em alguns poucos países e da mesma forma que sempre fizemos. É uma visão imperialista transposta pro nosso dia a dia de forma sutil, mas com impactos muito profundos.
Penso que precisamos de estruturas de remuneração e reconhecimento justas para a produção de dados e considerar também como produzir esse tipo de tecnologia internamente no nosso país. Precisamos de outras perspectivas na tecnologia, construir ferramentas a partir de outros modos de ser e de pensar. Quebrar com a lógica hegemônica do Vale do Silício.
Existem outras formas de se fazer as coisas, e acho que as empresas de tecnologia, de impacto social ou não, têm uma oportunidade enorme nesse sentido.
Acredito que como usuários, precisamos estar por dentro dessas dinâmicas, e que isso facilita que tomemos decisões mais conscientes sobre o uso dessas ferramentas. E isso é importantíssimo também para fortalecer a discussão em um nível institucional, avançar a pauta de regulamentação dessas tecnologias etc.
Andressa, do SabIAr:
Você pode trazer algum exemplo prático que você tem visto de um uso consciente de IA no campo de impacto?
João:
Destacaria o aplicativo Hand Talk! Muita gente não sabe disso, mas a Libras, Língua Brasileira de Sinais, é reconhecida oficialmente como língua no Brasil desde 2002, e a falta de uma conscientização e educação em Libras acaba contribuindo para a criação e manutenção de diversas barreiras de acessibilidade comunicacional para a comunidade surda. O Hand Talk App realiza a tradução automática do português para Libras, por exemplo, por meio de um sistema de inteligência artificial, e isso facilita o processo de aprendizado da língua de sinais por parte de pessoas ouvintes.
Isso se conecta com outro movimento importante relacionado à acessibilidade, que é a difusão de ferramentas de transcrição e tradução automáticas como um todo. Antigamente era raro vermos vídeos legendados nas redes sociais, por exemplo. Hoje já é praticamente o oposto. A mesma coisa com as grandes plataformas de vídeochamadas, como o Zoom e o Google Meet, que não tinham suporte para transcrição e tradução de reuniões e disponibilizaram esses recursos nos últimos anos. Muito disso se deve a ferramentas de IA, que rodam “por baixo dos panos”, nos bastidores desses sistemas. Acho que é um exemplo importante de se destacar, porque mostra que o problema não está em usar IA ou em implementá-la em larga escala. E também evidencia que muitas ferramentas do nosso cotidiano são “de IA”, mesmo que isso não venha estampado em todo tipo de comunicação sobre elas.
Andressa, do SabIAr:
Em outra conversa que tivemos, você disse que gostaria de trazer à luz um uso de IA sem negacionismo, com crítica, com resistência e debate. É exatamente o que a gente quer aqui no SabIAr também. Na sua opinião, porque é tão difícil andar nesse lugar?
João:
Falar de nuance em qualquer assunto hoje em dia é muito difícil. Estamos nos acostumando cada vez mais a pensar nas coisas em termos binários, sem aprofundamento. Quando trago meus questionamentos sobre tecnologia, por exemplo, é comum ouvir de volta das pessoas coisas como “ah, então você é contra tal ferramenta/tecnologia?”. E não poderia estar mais longe disso! Eu sou super fã do assunto e tem muita coisa simples e complexa do meu dia a dia que eu não conseguiria fazer sem as ferramentas que tenho à disposição hoje. Eu só acho que criticar uma coisa não significa rejeitar ela. É olhar para os aspectos não contemplados naquele debate. As coisas têm que ser mais conversas e menos campanhas.
Em segundo lugar, acho que temos um imaginário muito pobre. Estamos tão habituados com a dinâmica atual da tecnologia nas nossas vidas, com uma pequena quantidade de empresas construindo a maioria dos sistemas que utilizamos diariamente, que qualquer pensamento meio fora disso parece um absurdo. Quando foi que paramos de ser criativos, de visualizar soluções diferentes e ousadas? Falamos tanto de inovação no campo social e na área de tecnologia, mas às vezes me parece que isso é só mais um discurso vazio, para manter uma ideia específica do que é inovação em pauta.
Por exemplo: eu uso uma série de ferramentas de código aberto (open source), no meu cotidiano, e vejo como é difícil para as pessoas simplesmente contemplarem a possibilidade de fazer o mesmo. Naturalmente há trocas ao adotar ferramentas alternativas, mas de modo geral, eu consigo fazer tudo o que preciso, e com a tranquilidade de saber que essas ferramentas podem ser auditadas externamente a qualquer momento, que podem ser melhoradas por pessoas que queiram dar enfoques diferentes a elas etc.. Acho que isso é uma coisa simples de se fazer e explorar, que está super conectada à ideia de construir um cenário de tecnologia mais aberto e descentralizado, mas vejo uma resistência enorme à essa ideia por parte das pessoas.
Acho que resistência é uma coisa normal e não retiro o direito de ninguém de se recusar a algo. Mas acho que poderíamos direcionar nossa resistência a contextos mais úteis, principalmente relacionados a estruturas de poder. Os movimentos sociais utilizam muito esse termo nesse contexto. Resistir à opressão sistêmica da supremacia branca, do capital, do machismo. Não é disso que falamos quando falamos de impacto social?
Nesse sentido, eu acho que há sim espaço para resistência dentro da tecnologia. Resistência a práticas que precarizam o trabalho sob o pretexto de trazer “progresso” a partir dele. Resistência à aplicação de sistemas essencialmente experimentais em larga escala sem restrições ou um debate público prévio sobre riscos, impactos e contextos de uso adequados. Resistência a essa visão de mundo monocromática e hegemônica do Vale do Silício de que “a tecnologia é um caminho sem volta”. Quais tecnologias? Sem volta para quem?
Eu acredito que temos agência sobre as decisões que tomamos e que todo sistema é composto de uma série de decisões, seja ele baseado em inteligência artificial ou não. Então acho que nós, atores do campo social, temos que assumir essa responsabilidade, de questionar o que está posto para garantir que as tecnologias que estamos desenvolvendo e usando atendam de fato às nossas necessidades e gerem impacto social positivo.
Fique de olho!
Obrigada, João Vitor por compartilhar conosco sua expertise e visão sobre a aplicação da inteligência artificial no campo de impacto social. Sua experiência e insights são inspiradores e valiosos para todos que buscam utilizar tecnologias emergentes de maneira ética e eficiente!
No SabIAr, estamos comprometidos em continuar essa conversa e trazer mais perspectivas inovadoras para o debate.
Em breve, publicaremos outras entrevistas com profissionais que estão na vanguarda do uso da IA para transformar o campo socioambiental. Fique atento ao nosso canal para mais conteúdo enriquecedor e inspirador.
Obrigado por nos acompanhar e até a próxima!